quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Eu quero é morrer sozinho, bebendo vinho e olhando a bunda de alguém...

"Oh, mana
 Eu quero é morrer   
 Bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo vinho
olhando a bunda de alguém"
Baladas, Nei Lisboa.

Eu podia falar do Templo de Salomão, de Gaza, da volta do Felipão para o Grêmio. Podia estar desfilando de chapéu Panamá pela Flip, roubando, matando ou escrevendo livros de auto-ajuda. Mas não, estou aqui vendendo minhas mentiras honestamente, recheadas de veneno e adeus. 

Só que, diferentemente do Nei Lisboa, não vai dar pra ficar bem velhinho, mas tudo bem. O resto, o vinho e a solidão, espero encontrar em Buenos Aires.  Creio que a cidade, depois do calote, deve estar mais triste e elegante. Um ótimo lugar para se cair depois de comer um bife de chorizo, vigiado pelos abutres e olhando a bunda de alguém. 

Tava aqui pensando comigo mesmo:  pra que esperar pela carência dos planos de saúde se não tenho dívidas com minhas culpas?  Em tese isso quer dizer que posso morrer em paz. E quer dizer outras coisas também.

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O ódio, por exemplo. O ódio que, ao longo dos últimos vinte anos, foi o combustível da melhor parte da minha literatura, o ódio está virando uma espécie de desdém, do tipo "azar de quem vai ficar por aqui", como se eu já tivesse destilado todo o veneno e agora me restasse apenas o vapor desse ódio, algo tão inútil como o amor que desperdicei com as pessoas erradas.  

A questão aqui não é tanto o egoísmo ( só um pouco). Pensando bem, o egoísmo também virou outra coisa. Está mais prum anjo de Brecheret refletido num rayban de viúva do que para egoísmo propriamente dito, portanto mais para beleza passageira do que para qualquer outro sentimento mais nocivo. Porque uma coisa eu aprendi nessa vida: extrair ouro do lixo, e antecipar noite nos pôres de sóis.  

Meu maior ressentimento, que era não ter meu trabalho reconhecido, transformou-se num senhor elegante no funeral do melhor amigo, eu me reconheço e já é o suficiente. Sobre traição, bem, definitivamente, isso não deveria ser um problema. Não para quem foi traído.  A essa altura do campeonato, com as coronárias entupidas e sem dinheiro para pagar o plano de saúde, ter a responsabilidade pela culpa dos outros já é demais.

Ninguém tem obrigação de perdoar ninguém. Perdão é artigo para consumo próprio,eu me servi dessa iguaria; e o mesmo valerá para as mulheres que você abandonou e para as mulheres que o abandonaram, para os traíras, os crápulas, os vacilões e os filhos das putas em geral. Experimentem.

Da auto-absolvição para o esquecimento é um pulo. Eu vi o feijão rolando na boca aberta do inimigo, ruminei os demônios dele e envelheci atravessando ruas com os punhos cerrados - olhei para trás e não achei ninguém.  O esquecimento é o avanço tecnológico do perdão. A maior vingança. O esquecimento é a cura. Tenho esse dom, carrego a mágoa mas esqueço. 
 
Não me lembro o que, por que, nem quem me machucou, e sigo adiante - humilhado porém mais forte. Depois de morto creio que não vai ser diferente.  Daqui pretendo apenas levar algumas boas recordações: vai ser legal, por exemplo, lembrar dos passeios de mobilete com o Peixe, meu irmão mais novo.  Vinho, bundas,solidão.

Aí virá o purgatório que os espíritas chamam de lar deles. O pior é que eu vou acabar   gostando do ambiente peruquento imaginado pelo Chico Xavier, vai ser bom,espero que sim. Na verdade, vai ser ótimo passar uns meses numa repartição pública brega e limpinha, no céu classe média de Águas de Lindoya, estirado sobre o gramado da eternidade vou lembrar do garoto dentuço de pernas compridas e meio desajeitado, tímido, muito magro e quase feliz: fui eu. 
 
No meu primeiro sonho depois de morto, vou lembrar do pavor e da esperança que enchiam os pulmões do garoto de ar puro, ele que tanto sonhou e não disse uma palavra quando sobrevoou a copa das árvores, lembrarei que os sonhos do garoto continuarão sendo os meus sonhos. Isso me dá uma liberdade quase sobrenatural, como se eu voasse mesmo -acima de todos os erros que cometi nessa vida. Portanto, estar vivo aqui e agora ou morto e enterrado a sete palmos do chão amanhã ou depois de amanhã, é um pormenor, algo indiferente para mim, como se eu já tivesse morrido na calle Ciudad de la Paz,ali, sozinho,bebendo vinho e olhando a bunda de alguém.   

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